CIDADES REALMENTE INTELIGENTES DEVEM SER ANTROPOCÊNTRICAS

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LUIZ MARINS
Antropólogo, escritor e consultor www.anthropos.com.br

O grande desafio no debate sobre cidades inteligentes é que a discussão quase sempre está centrada na tecnologia digital. Nada contra. A pergunta é: para quem serve a cidade inteligente? O que ela realmente significa para o cidadão comum? O que o homem do meio da rua realmente precisa e quer?

O problema, principalmente no Brasil, é que os ideólogos e desenvolvedores das chamadas cidades inteligentes nem sempre levam em conta a realidade concreta de que a maioria dos cidadãos brasileiros é semialfabetizada e quase analfabeta digital e é, justamente, para essa população mais carente e desprovida de recursos que as cidades inteligentes devem servir como prioridade. O problema, portanto, é quando as tecnologias digitais propostas não são centradas no cidadão, no ser humano e sim nos aspectos da própria tecnologia.

Essa falta de empatia com a realidade do homem brasileiro, oral e auditivo faz com que as propostas sejam distantes do cidadão comum que prefere ficar horas numa fila de banco para falar pessoalmente com um gerente, uma pessoa, um ser humano de carne e osso e não com um aplicativo de smartphone, por mais disponível que possa estar.

Os bancos e as lojas digitais tiveram que se dobrar a essa realidade e colocar pessoas para realizarem as tarefas digitalizadas. O cidadão comum ainda prefere ir a uma loja física e lá aceita sentar-se ao lado de uma atendente que fará  para ele a navegação e o auxiliará na escolha dos produtos e serviços. O mesmo acontece nos bancos. Basta conversar com os atendentes das ATM ou caixas eletrônicos e ouvir suas histórias que relatam a dificuldade da maioria da população de baixa  renda  em se desvencilhar das exigências, passos e instruções que essas máquinas fazem.

No serviço público, o problema é ainda maior, pois quem busca esse tipo de atendimento em sua grande maioria são as pessoas mais simples que não têm condições de contratar terceiros para fazer essa dura tarefa e ter seus problemas resolvidos.

Acompanhei durante alguns dias e algumas horas pessoas em caixas eletrônicos de vários bancos. O que pude constatar é uma grande irritação e às vezes desespero das pessoas com mais de 55 anos. Nativos digitais até conseguem resolver com mais facilidade, mesmo assim, quase 2/3 dos que observei pediram ajuda ao funcionário de plantão. Pessoas acima de 65 anos não se importavam em dar suas senhas ao atendente para que eles realizassem todas as operações.

É óbvio que a tecnologia posta a serviço do homem – antropocêntrica,   portanto, – é bem-vinda e fundamental para o bem-estar do próprio homem. Toda tecnologia deve sempre ser entendida como um meio para se atingir um fim e não um fim em si mesma. E não podemos confundir tecnologia com os produtos da tecnologia. As tecnologias sempre existiram para facilitar a vida e não para complicá-la. Desde a invenção da cerâmica, da domesticação de plantas e animais, do ferro e do aço, do vidro, da máquina a vapor, do avião, do rádio e da televisão, todas elas vieram para facilitar a vida e dar a ela mais qualidade, isso sem falar dos antibióticos e do progresso da farmacologia e da química. Desde a origem das cidades, como nos mostra Mumford.

Assim, no que se refere principalmente ao tema cidades inteligentes é preciso, sempre, simplificar e abandonar qualquer tentação de oferecer mais do que o necessário e desejável. Desenvolvedores de tecnologias digitais se encantam com as inúmeras possibilidades adicionais que podem ser agregadas a um produto ou serviço tecnológico. Mas é preciso buscar a frugalidade, a simplicidade e atender o essencial e o importante, deixando o  acidental de lado. Para o caso brasileiro, por exemplo, deve-se buscar sempre que possível, o uso de tecnologias de comando de voz. Isso irá ao encontro da oralidade do brasileiro e possibilitará uma quebra da desconfiança e da insegurança que o cidadão simples sente ao usar esses recursos. Assim, cidades realmente inteligentes devem ser antropocêntricas e servir ao cidadão comum tornando a vida na urbe mais simples, agradável, descomplicada e feliz.